Falas Silvestres – Abel Neves
Évora acolhe com vagar o teatro que vagueia.
Neste Outubro de 2023, vinte anos depois, o CENDREV fez renascer o Encontro de Teatro Ibérico. O Outono em Évora pode, pois, contar com mais episódios nos próximos anos, o que, sendo “notícia de teatro”, traz mais ânimo ao fazer teatral e, particularmente, à dinâmica do Theatro Garcia de Rezende no seu diálogo artístico com a cidade.
A espontaneidade na fala pode agradar a muitos adeptos, por exemplo, da filosofia, mas nem sempre recebe simpatia nos que elegem o palco para a exposição dos seus talentos e que propõem jogos de entendimento e de sensibilidade a partir de criaturas virtuais. Isto se forem as personagens, e o que transportam, o que mais importa no teatro que vamos pensando e fazendo.
É facto que acredito que a espontaneidade na fala oferece bastas vezes muita imperfeição e, logo, fracasso porque não domino por inteiro o que pretendo anunciar ou porque se esfumam as ideias inesperadas a cada palavrinha dita, mas num encontro de teatro, as falas silvestres – porque mais vivas do que a reprodução de um qualquer apontamento de texto prévio – podem ser mais prodigiosas do que o mistério escrito.
Atrevi-me, pois, a vocalizar uma e outra fiada de palavras, pouco astuciosas, sem grande cuidado, mas com o gosto do bravio.
Senti-me bem neste encontro de falas sinceras, sem ronha, capazes de levar adiante outras acções que não sejam, tão somente, o reverberar dos discursos, embora isso já valha muito, precisamente, pelo brilho, pela escuta.
Cheguei a pensar – e disse-o – se valeria a pena indagar sobre a validade ou não dessa minha antiga preocupação que era a de saber se um comediante é um objecto de arte. Se o não for, o que será ele, o actor, que se dedica a disponibilizar o corpo, cuidando da memória, refrescando-a a cada novo texto, a cada nova aventura oferecida ao público? Dá trabalho entender-se a cada instante com a memória, condicionar-se com a presença exigente das personagens, mas é de crer que é este amor – ainda que muitas vezes não declarado e tantas vezes também desatinado e não reconhecido – que faz a nobreza primeira do acto teatral: os comediantes iniciam-se – e iniciam o público – nessa viagem humana no teatro, esse lugar além do espelho, e que, bem pensado, pode levar-nos à utopia.
O espectáculo do que dizemos ou mostramos não deverá ser alvoroço para os ouvidos ou espalhafato para encher o olho, embora saibamos que o teatro tem muito rugido também.
Na verdade, cabemos todos no lugar comum que é o teatro, mas nem todos pensamos ou desejamos o nomadismo de espírito capaz de nos tornar mais aptos à liberdade, à compreensão dos mundos e, se possível, contribuindo para a melhoria do estado miserável em que muita humanidade se encontra, sendo certo que o teatro não tem nenhuma chave para nenhum portal de salvação.
Lembrando o querido “Pepe” Monleón, que tão lucidamente fez desenvolver o Instituto Internacional de Teatro do Mediterrâneo e que esteve presente na primeira edição do Encontro, reabilitámos a ideia de que no Mediterrâneo, de Marrocos à Palestina, e girando pela Turquia, Grécia, Itália, França e Espanha, somos todos vizinhos num mosaico cultural imenso e maravilhoso, apesar da nossa tão proclamada e, digo eu, muito viciada vocação atlântica.
Vamos num tempo em que obedecendo a subtis imposições dos poderes políticos e outros, somos levados pela mão como cegos e nisso o teatro ajuda, não para a manutenção de uma caminhada indigna, mas para o despertar dos sentidos adormecidos ou calcados pelos obscuros desígnios dos que se acham senhores do mundo.
Neste encontro de falas silvestres ocorreu-me uma perguntinha simples que não cheguei a verbalizar e que agora inscrevo neste final de página:
o que andamos a fazer com o que fazemos ou assistimos no teatro?
E, agora, meto a viola no saco.
Abel Neves
27 de Outubro de 2023, Évora