No teatro, a cada passo, falamos da necessidade de algo que nenhum de nós sabe exatamente o que seja, mas que preenche o colorido lexical do discurso nos ensaios e nos espetáculos e parece tantas vezes decidir a função teatral: a energia.
Somos mais adeptos da enigmática energia – sufragada a cada solavanco de maior ou menor intensidade no desempenho dramático – do que defensores dos argumentos presentes na biografia das personagens, isto é, temos mais apreço pelo troar dos sentidos impalpáveis do que pela fineza do pensamento, ou, se se quiser, da racionalidade em que assenta boa parte dos episódios das ações dramáticas, ainda que possa ser destravada ou manipulada por impulsos afetivos.
Atentos às dificuldades, habituámo-nos a ter a energia por companhia e a culpá-la sempre que num ou noutro instante decaímos em onda de fraqueza porque, claro, a imperfeição habita todos os seres, e sem ela nem sequer os teatros teriam existência. Havendo desacertos, há reações, e só na aparência há equilíbrios.
Então, no teatro, gostamos de energia. E fora do teatro?
O que andamos a assistir fora do teatro talvez deva exigir-nos uns bem nutridos pacotes de energia para suportar, uma vez mais, as investidas diabólicas da injustiça. Falo, naturalmente, das criminosas ofensivas de genocídio na Palestina orquestradas desde há muito pela entidade sionista de Israel. Quero lá saber que não haja elegância na combinação de palavras que aqui estou a vocalizar e também quero lá saber que isto seja uma declaração mais política do que um agradável entretenimento intelectual. O sofrimento por que passa o povo palestiniano, e também agora, uma vez mais também, as comunidades do sul do Líbano, já não tem tradução em palavras, mesmo que certeiras na exigência de justiça e, naturalmente, compassivas, embrulhadas de vergonha. Creio que temos a responsabilidade de afirmar o quanto, no teatro e fora dele, precisamos de uma humanidade devotada aos brilhos da liberdade e não destinada a sucumbir sob a ganância de uns quantos criminosos que apenas apostam na conquista de territórios, que obviamente lhes não pertencem, massacrando a torto e a direito, destravando impunidade a cada passo das suas brutalidades, armados de panóplia interesseiramente oferecida pelos agora patronos de uma terra também ela usurpada aos povos nativos, há pouco mais de duzentos anos. Isto anda, obviamente, tudo ligado.
Não é demais afirmá-lo: estamos, hoje, a assistir a um genocídio com uma tal barbaridade instalada nos atos militares de colonização, que só deveria existir um modo de parar com a cruzada: ofuscando por completo os autores desta insana e trágica aventura humana.
Além de dignidade, falta-nos, pois, energia para desembestar os que se orgulham do tráfico dos horrores, das matanças claramente patrocinadas por mamíferos descerebrados que se auto intitulam de “gente civilizada”.
Ao inferno com esses trastes.
Ocupamo-nos, felizmente, com as nossas falas e ações teatrais, sugerindo vidas novas, suportadas por renovadas inteligências e sensibilidades, contando as histórias que inventamos com o simples propósito de enobrecer o mundo e as pessoas que aqui têm morada, mesmo sabendo que as nossas artimanhas em cena, fruto de esforçados, também resistentes, trabalhos de criação, pouco mais vão além da ilusão do efémero, ainda que em nós permaneça a crença na arte e na beleza, nos bons humores, na semeadura teatral que pode fazer vingar tudo isso no espírito dos públicos.
Neste renovado Encontro de Teatro Ibérico, que desde os seus inícios tem procurado o diálogo com culturas teatrais de outras geografias, em particular com os vizinhos da bacia do Mediterrâneo, não quis deixar de lembrar, por isso mesmo, embora em modesta celebração, esse povo das oliveiras, da alma mediterrânica, e que desde há muito resiste à mais hedionda perseguição e bárbara colonização.
Não somos milagreiros, mas podemos descortinar a melhor das energias para arrumar de vez com a tragédia palestiniana.
Nesta última linha, entre nuvens, ciprestes e oliveiras, vislumbra-se a bandeira da Palestina.
Encontro de Teatro Ibérico, Évora, 8 de novembro de 2024.
Texto escrito no âmbito do Encontro de teatro Ibérico 204 e adotado como preocupação conjunta dos intervenientes.
Fotografia de Josny Salah – fotógrafo palestiniano a viver atualmente na faixa de Gaza